quinta-feira, 18 de junho de 2009

Capítulo 03 • Hands up!

(Mãos ao alto!)

Segui pela rodovia 101, tamborilando ao volante e cantarolando alegremente a canção que tocava no rádio. ­­ ­­  

Hustlers grab your guns
Your shadow weighs a ton­
Driving down the 101­­

Olhei para o relógio. Chegaria a tempo, acho. De qualquer forma, esperar faz parte, principalmente para quem está acostumado a esperar a galinha botar um ovo para comer uma omelete. Qualé, ele nem deve saber o que é industrialização. Eu, entretanto, sabia e lidava muito bem com a tecnologia. Ei! O que era aquilo ali na frente? Uma aglomeração de carros? Nesse horário? Não, não poderia ser. Esse trecho da rodovia só engarrafa na hora do rush, entre as 18 e as 20 horas. Desacelerei e, com um pouco mais de precaução, continuei seguindo em frente lentamente. Só então pude notar o porquê do congestionamento: blitz ou, em outras palavras, o meu fim. Tá, sem hipérboles, Kaitlin. Pára de ser dramática, hm.
Não que eu não pudesse dirigir. Tinha todos os documentos em dias e todas as devidas autorizações em relação ao carro, mas... eu havia bebido. Oh, yeah. Por mais que aqueles copinhos não tivessem agido, de fato, no meu corpo já calejado, o bafômetro identificaria a quantidade de álcool e eu estaria ferrada. Se haviam prendido até a Paris Hilton, não era eu que iria escapar. O jeito era torcer para que os policiais não encrencassem ou, o que era mais improvável, para que o efeito da bebida já tivesse desaparecido. Cautela, Kait. Cautela.
Mantive o pé no acelerador e tratei de parecer o mais inofensiva possível, mas aquela roupa por si só já parecia me incriminar o bastante para me mandar direto para a cadeia. Anotação mental: lembrar de trocar de roupa quando sair do trabalho às três da manhã em situações como essa.
O carro da frente parou de vez e só então notei que um outro veículo mais adiante estava tendo a sua papelada verificada por um policial que parecia com uma versão negra do Vin Diesel.
Os veículos voltaram a acelerar, e eu pude sentir o meu coração disparar. A música já não conseguia mais me distrair a essa altura. Vi a Ranger da frente passar pelos guardas sem maiores transtornos e me tranqüilizei um pouco. Eles não iriam me parar. Espera aí. Por que eu realmente acreditava que meu bom Deus poderia me livrar de uma dessas? Nem praticante eu sou. Sim, ele mandou que eu encostasse o carro. Merda.
O policial durão veio em minha direção, mas foi uma mulher que acabou fazendo a abordagem.
- Boa noite, senhorita. – A policial me cumprimentou e, pelo seu olhar, pude notar que ela analisava minhas roupas. Seu nome, segundo o seu crachá, era Roberts. Tenente Roberts.
- Boa noite, senhora. - Sorri educadamente e fiz a expressão mais serena que poderia fazer em um momento como aquele. Sempre fui boa com interpretações. Na verdade, me chamavam de dissimulada de vez em quando.
- Documentos do veículo e carteira de motorista, por favor. - Ela pediu educadamente.
Ela ainda não tinha tocado na palavra “bafômetro” e, pelo visto, não pretendia tocar. A minha cara de santa merecia o Oscar de melhor atriz, eu sei. Eu sou demais, cara. Ah, sim, os documentos. Apoiei a mão no banco do carona e inclinei o meu corpo para que pudesse alcançar o porta-luvas do carro. Abri-o e, para a minha infelicidade, a garrafinha de vodca que eu trazia sempre comigo caiu. Ca-ce-te.
Apanhei os documentos e tentei esconder o recipiente metálico. Too late, já era tarde demais. Vi a tenente sinalizando para o policial durão e apontando para a própria boca. Ela estaria pedindo o etilômetro? Não demorou muito e as minhas suspeitas se confirmaram.
- Será que poderia assoprar aqui, mocinha? – Ouvi-la dizer e até desisti de terminar a busca pela carteira de motorista jogada pelo carro.
- Claro, senhora. – Cínica, eu sei.
Não tinha mais o que fazer, então assoprei. O aparelho fez alguns barulhinhos e logo um pequeno visor iluminou-se com um “2,4” em letras garrafais. A policial pareceu espantada. Oh, grande coisa.
- Sinto muito, senhorita. Teremos que apreender o veículo. – Ela completou.
- É O QUÊ? – Era incrível como essa frase estava sendo usada com frequência nos últimos instantes. Bad day, bad day, bad day. Ou night, tanto faz. – Não seria só pagamento de multa? Não bebi tanto assim, afinal.
- Não bebeu tanto? – Ela riu. Risadas irônicas me tiravam do sério. – Olha, mocinha, com 2,4 de álcool no sangue o organismo já apresenta sinais de instabilidade, diminuição da atenção e do reflexo, falta de coordenação muscular, vertigens, desequilíbrios e até mesmo distúrbios de sensação. Você sabe o que significa isso? – Antes que eu pudesse responder ela continuou. – Acho que não. Isso significa que a sua irresponsabilidade poderia tirar a vida de algum inocente. Fui clara?
Não iria respondê-la, não depois de tanta ignorância e de se achar a melhor do mundo. Tenentizinha idiota. Eca.
- As chaves e documentos, por favor. – Prosseguiu ignorando o meu silêncio. Quem cala consente, anyway. - O carro ficará detido até que pague a multa e esteja em condições de dirigi-lo. Agora, se me permite, voltarei ao trabalho. Não tenho tempo a perder. Pode entregar as coisas ao Sargento Wilson.
Merda. Entreguei os documentos e as chaves para o policial durão, o tal de Sargento Wilson, e saí. O que eu ia fazer, afinal? Já passavam das quatro horas da manhã e com certeza o caipira já deveria estar esperando por mim. Só sei que a minha intuição feminina dizia que alguém iria morrer - e esse alguém era eu.


Olhei impaciente para o relógio e vi que já passavam das quatro. Onde aquela garota estava, afinal? Tudo bem que ela não estivesse feliz com a notícia de um primo de milésimo grau completamente estranho morando em sua casa, mas não custava nada ela não julgar sem me conhecer. Quanto tempo ela ainda levaria para chegar? Será que ela era gata?
Sentado sobre a mala e recostado no muro frio, eu começava a sentir as minhas costas doerem e os meus pés agonizarem com as cãibras. Minhas pálpebras começavam a pesar, obrigando-me a fechar os olhos. Lutava para abri-los novamente, contudo, isso estava se tornando uma tarefa cada vez mais difícil.
Incontrolável, involuntário. Assim foi o sono que fez com que eu adormecesse ali mesmo.


Ótimo. Maravilhoso. Perfeito. Afinal, quais adjetivos são bons o bastante quando você pretende caracterizar o quão legal é estar sozinha em uma estrada, com o seu carro detido e com um primo retardado a te esperar? Tudo isso por causa de alguns copinhos. Tinha que tomar uma decisão. Peguei o celular dentro da bolsa e meus dedos discaram o número que já sabia de cor: o do Jake. Ele deveria estar saindo do Fantasy em breve e era caminho, uma vez que éramos quase vizinhos.
O Jake morava em um outro condomínio de luxo que ficava próximo ao meu. Assim como eu, nasceu e família rica e nunca precisou trabalhar muito para levar uma vida de luxos e excessos. Aos 22 concluiu a universidade de direito, profissão que, apesar de nunca ter exercido, foi e ainda é bastante útil para livrá-lo das encrencas que arrumava e continua arrumando com a casa de shows. A propósito, o Fantasy foi o presente de 23 anos dado pelo seu pai, Arnold Laker, que queria vê-lo tomar algum rumo na vida e diminuir os gastos com a farra. O conheci na inauguração do clube. Nos envolvemos e chegamos a ter um rolo mais sério, que acabou terminando alguns meses mais tarde. Terminando não, minto. Apenas deixou de ser sério e passou a ser esporádico. Mas, apesar do (pseudo) fim do (pseudo) namoro, ele me chamou para trabalhar lá. Disse que eu tinha carisma. Aham, sei o carisma. De qualquer forma, aceitei e não me arrependo. Noites divertidas, bebida de graça, salário e gorjetas no fim do mês e, principalmente, muita dança.
- Alô? Alô? – Ouvi a voz que eu tanto gostava falar do outro lado da linha e voltei a minha atenção para a ligação.
- Jake? Desculpa, não tinha ouvido chamar.
- Aconteceu alguma coisa, Kait? – Ele se preocupava comigo e dava para notar isso na sua voz. E eu amava, hoho.
- Gostaria poder dizer que não, mas aconteceu sim. Tá tendo blitz, os caras me pararam, o bafômetro indicou álcool no sangue e eles acharam que eu estava bêbada demais para dirigir. Apreenderam meu carro e só vão me liberar quando estiver sóbria e tiver pago a multa de... – Finalmente dei importância ao papel e verifiquei o valor. – Quatrocentos dólares. – É, nada de festa essa semana. – Enfim, pensei que você ficaria feliz em poder me pegar.
- Feliz em ter que ir apanhar uma menor de idade que teve o carro detido por dirigir alcoolizada? – Nós rimos. – Não mesmo. Mas eu vou te pegar sim, gata. Só que é provável que eu tenha que esperar uma hora antes de sair.
- Caralho, Jay. Daqui até lá eu já morri congelada aqui. Se for para fazer o favor, faça direito.
- Pode deixar que quando chegar aí eu te esquento, se o problema for esse. – Como era sem vergonha, God. – Preciso esperar, Kait. Você não é a única que andou bebendo e não adiantaria nada se eu também fosse pego na blitz.
- Assim que os caras vazarem eu te ligo, ok? – Disse esperançosa de uma resposta positiva.
- Beleza. E vê se não se mete em encrenca. Mais encrenca, quero dizer.
- Eu sei me cuidar, papai. – Ironizei o “papai”, embora soubesse que, para ele, aquilo parecia um tanto quanto pervertido.

Flashback

- Pirralha. – Ouvi-lo dizer bem baixinho com a boca colada ao meu ouvido. Ele adorava fazer aquilo. Sabia que eu odiava ser chamada assim, embora disfarçasse o desgosto muito bem.
- Até parece que você não gosta da pirralha aqui... – Sussurrei ao seu ouvido, fazendo-o se arrepiar. Escorreguei os lábios entreabertos pelo seu pescoço, aplicando leves chupões na área enquanto unia ainda mais os nossos corpos com a mão livre. A outra estava massageando a nuca do moreno. Voltei a subir os lábios e, ao alcançar a sua orelha, completei. – Tio Jay.
Senti o volume por debaixo da sua calça tornar-se mais acentuado e pressionar a parte logo abaixo do meu ventre. Fechei os olhos e cedi. 

Fim do flashback

- Beijo, filhinha. E cuidado para não ser vítima de incesto qualquer dia desses.
Embora ele estivesse longe, pude visualizar com clareza a imagem do seu rosto se formando a minha frente e um sorriso sacana brotando de seus lábios. Jay, Jay. O bom e velho Jay. Nunca mudou. Desliguei e, literalmente, esperei sentada pela minha salvação.                       

[...]

- Jay? – Esperei por qualquer barulho que comprovasse que estava sendo ouvida e continuei. – Os caras já saíram e... levaram o meu carro. Disseram que ele vai está disponível a partir das seis, que é quando o posto abre novamente.
- Mais dez minutos e eu chego aí. – O moreno respondeu. – Já tava ficando preocupado com você e resolvi sair mais cedo.
- Relaxa, Jay. Não vai acontecer nada, não. Pode ficar tranqüilo. Tô te esperando em um banco próximo a cabine telefônica, tá?
- Tá. Já tô chegando.
Desliguei e olhei para o relógio pela milésima vez. Passavam das cinco e meia da manhã. Devo admitir que uma parte do meu cérebro cruel ainda conseguia se alegrar ao imaginar o caipira em pé, com os pés formigando e atraindo os olhares dos que passavam e o julgavam como maluco. De-lí-cia. O lado mais sensato, porém, estava preocupado. Se minha mãe descobrisse, eu realmente estaria ferrada e, além disso, ainda teria que pegar o carro ou inventar uma desculpa boa o suficiente para justificar o seu sumiço antes que ela chegasse da tal reunião do trabalho na cidade vizinha.
Fui arrancada dos meus devaneios bruscamente pela buzina do conversível vermelho do Jake. Aleluia, aleluia. Levantei e mal podia sentir as minhas pernas. Há quanto tempo não ficava parada por tanto tempo? Nem podia me lembrar, mas sabia que a falta de costume havia tornado aquilo um tanto quando doloroso. “Toma, Kaitlin. É para pagar sua língua e seus pensamentos from hell”, ouvi meu subconsciente me dizer.
Abri a porta e me joguei no assento. Juro que nenhum banco de couro havia parecido tão confortável até então. Deixei que o peso da minha consciência empurrasse a minha cabeça para trás e fizesse-a recostar na poltrona macia. Estava exausta. Respirei fundo e finalmente ganhei forças para virar o rosto para o lado e agradecer.
- De nada, minha gata. Você sabe que eu tô a sua disposição. – Um sorriso maroto estampou a sua face e o seu tom de voz pareceu transformar-se em um quase sussurro. – Para absolutamente tudo.
Arqueei uma das sobrancelhas e ri um pouco mais alto do que a situação pedia. De fato, ele não mudava nunca.
- Tá bom, Jake. Já entendi as mensagens subliminares. Pode ficar tranqüilo quanto a isso. – Pisquei e só então prossegui. – Enquanto esse dia não chega, porém, será que você poderia fazer mais um favorzinho?
- Quem trabalha de graça é relóg...
- Pessoas caridosas trabalham de graça desde sempre, amor. Você não vai se importar, vai? Eu sei que não. Além disso, faltam menos de 20 minutos para as seis horas. É o tempo certinho de chegarmos lá, pegarmos o carro e voltar. – Sorri e beijei a lateral do seu rosto bonito. – Brigada, my little angel. Sabia que não iria se incomodar.
Conversando e rindo, seguimos até o posto policial onde o veículo estava apreendido. Ou pelo menos deveria estar.
- Bom dia... – Pausei o tempo necessário para ler o nome do policial no crachá de identificação. – Paulling. – Completei. – Meu carro foi apreendido na madrugada de hoje e eu realmente preciso dele.
- Desculpe, senhora, mas o tempo decorrido até que os veículos sejam trazidos para cá é de 24 horas. Lamento. – O sargento respondeu sem sequer tirar os olhos da papelada.
- Oh, Paulling. – Inclinei o corpo sobre a bancada, evidenciando o meu decote e finalmente chamando a sua atenção. – Mas eu realmente preciso dele, entende? Tem certeza de que não pode fazer absolutamente nada por mim? – Mordi o lábio inferior e fiz uma cara de preocupada. Eu estava flertando com um velho, eca. Onde tinha ido parar a minha dignidade?
- Er... – Ponto para mim. O velho havia ficado desconcertado. Agora sim ele poderia parar de olhar. Me concertei, voltando a me recompor. – Se a senhora pagar a multa, posso levá-la até o local onde os carros são levados diretamente. Não poderá pegá-lo agora, devido ao pouco tempo decorrido desde o momento em que foi pega bebendo, mas posso ajeitar as coisas para que levem o veículo até a senhora. Não é um procedimento típico, no entant...
- Aonde eu pago? – Interrompi-o. Bastava de joguinhos de sedução barata.
- Aqui mesmo. Deixa só eu pegar os papéis e os carimbos para emitir o recibo.
O policial de meia idade saiu e a sua voz estridente foi substituída pela do Jake murmurando em meu ouvido:
- Isso é golpe baixo, Kait. Ainda mais com um velhinho. Ele pode não agüentar, sabia? – Ele riu. - Eu não agüentaria no lugar dele.
- Vaso ruim não quebra. E eu me refiro a você. – Virei o pescoço e, após ficar frente a frente com ele, pisquei.
Não demorou muito para que Paulling voltasse trazendo toda a papelada necessária para a liberação do veículo, e passados dez minutos Jay e eu já estávamos de volta a rodovia 101, dirigindo em direção ao Santa Melanie, o bairro onde nós morávamos. O trânsito estava livre e o único contratempo que encontramos foi uma única sinaleira fechada já bem próxima à entrada do condomínio. Jake parou o carro e, vendo que ainda faltavam 90 segundos para que o cronômetro chegasse ao zero e o sinal finalmente ficasse verde, resolveu investir.
- Eu realmente sinto saudade de você, sabia? – Senti os seus olhos fixarem os meus e a sua mão sair discretamente do volante e chegar até a região da minha coxa. – Sinto falta de quando eu era mais do que um bom amigo, um quebra-galho ou patrão.
Não fazia o tipo de garota que ficava sem graça assim, fácil. Entretanto, se tivesse que ter corado em algum momento da minha vida, esse momento teria sido agora.
- Olha, Jay... – Apoiei a minha mão sobre a dele e, apertando-a carinhosamente, trouxe-a até os meus lábios e a beijei. – Você não é só isso, entende? Só que o destino fez com que você, nesse momento, não fosse mais. Consegue me entender?
A sinaleira abriu e, antes que ele pudesse emitir qualquer som ou resposta, o veículo do fundo buzinou, fazendo-o acelerar. Seguimos.

Fim do capítulo O3 • Hands up!

1 comentários:

Anônimo disse...

adorei esse capítulo, só to esperando o 4 :D